Amor incondicional
O tema adoção ainda é carregado de tabus e preconceitos, ao mesmo tempo em que produzir histórias de amor incondicional.
Nessas horas, nem a burocracia ou a longa espera diminui a gratificante experiência de ser chamado de papai ou mamãe.
Como você definiria amor incondicional? A pergunta sugere inúmeras respostas, em diferentes contextos, mas para muitas famílias, esse sentimento se traduz na figura de um filho, mesmo que ele tenha sido gerado por outra pessoa. E esse amor, somado a boas doses de carinho, atenção e cuidados alimentam o sonho de quem finalmente saboreia a magia de ser pai ou mãe. A adoção entra em cena como uma alternativa para viabilizar esse sonho, fazendo a ponte desses sentimentos a crianças, que aguardam por um novo lar. O processo é longo e requer uma burocracia amparada em leis, mas a espera é recompensadora. No final, todos ganham.
Até bem pouco tempo, a escolha pela adoção era a alternativa quase exclusiva de casais impedidos de terem filhos biológicos. Felizmente, hoje o cenário é outro, bem como o perfil das famílias. Muitos casais sem problemas para gerarem filhos ou pessoas solteiras optam pela adoção. Novas formações familiares diferentes do modelo tradicional também contribuíram para o aumento do número de habilitados aptos a adotar.
A enorme quantidade de informação disponível não elimina o medo e a insegurança para quem deseja adotar ou apadrinhar. Questões como a dificuldade de adaptação do menor a nova casa, a família se adaptar a presença de mais um membro, a educação, os cuidados, a saúde e o preconceito permeiam o imaginário dos futuros pais. A adoção ainda não é encarada pela sociedade como um processo natural e sadio. Não raro, casos de discriminação exibem a sua face, principalmente se há diferença étnica.
Este e outros desafios fazem parte da convivência humana, inerentes ou não a adoção, mas nesses casos, podem criar barreiras ou pré-julgamentos que certamente atrapalham a decisão final por um filho fora da gestação familiar. Por conta disso, muitos optam por um perfil “menos danoso”, segregando a estética pelo amor.
Exclusão pela idade
Hoje em todos Brasil são 33.474 habilitados a espera de uma criança. Apesar das mudanças no contexto social, a quantidade de menores em abrigos é bem alta. Segundo dados oficiais, são mais 44 mil. Porém, apenas 5.530 crianças institucionalizadas estão cadastradas no Cadastro Nacional de Adoção. A discrepância entre a oferta e a procura estaria facilmente resolvida se não fosse pela preferência de muitas famílias por um perfil específico de candidatos a adoção, quase sempre menores de sete anos, cor de pele clara, sem irmãos ou doenças. Mesmo com as mudanças do perfil familiar e o aumento de habilitados a adotar permanece quase inalterado o modelo de preferência clássica.
A psicóloga Aline Teixeira, que atua no centro de apoio a adoção Quintal de Ana, lamenta que crianças acima de sete anos fujam do perfil preferencial da maioria dos casais. Segundo ela, essa rejeição é percebida pelos menores e pode afetá-los psicologicamente. “Existem 5.530 crianças institucionalizadas e cadastradas no Cadastro Nacional de Adoção (CNA), porém 4.322 dessas crianças têm acima dos 10 anos. Sem sombra de dúvida essas crianças são afetadas psicologicamente. É perceptível um baixo rendimento cognitivo, autoestima prejudicada, falta de motivação, dificuldades no processo de desenvolvimento de uma personalidade sadia e construtiva”, avalia. Ainda segundo a especialista, essas crianças não têm perspectiva de vida, de serem reinseridas em um ambiente familiar. “São crianças que foram institucionalizadas por um longo período de tempo e não possuem uma referência em suas vidas”, lamenta.
Apenas 1 em cada 8,15 crianças abrigadas no país figuravam no Cadastro Nacional de Adoção (CNA). São mais meninos (56%) do que meninas (44%), classificados em totais nacionais como pardos (47%), brancos (33%) e negros (19%), além de um pequeno número de indígenas e amarelos. Só na Região Sul o contingente de brancos (54%) supera o de pardos, certamente em razão do perfil étnico dos moradores daqueles estados.
Nem todas as crianças abrigadas estão disponíveis para adoção
Segundo o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), há mais de 40 mil crianças e adolescentes no país, residentes em 2.380 serviços de acolhimento. Porém, apenas quase cinco mil estão habilitadas a adoção. O acolhimento é uma medida de proteção prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) para casos de violação ou ameaça dos direitos das crianças e dos adolescentes. As crianças que moram nas unidades de acolhimento podem estar com processos de suspensão provisória da guarda e serem reintegradas posteriormente à família ou, em caso de perda definitiva da guarda, serem encaminhadas para adoção.
Mesmo com novas leis, a burocracia ainda é o principal entrave ao processo de adoção, cuja demora, muitas vezes, resulta nos chamados “filhos de abrigo”, ou seja, crianças que acabam passando sua infância inteira em unidades de acolhimento até atingir a maioridade.
Para o advogado Felipe Fernandes, presidente da Comissão de Defesa da Criança e do Adolescente da OAB Niterói, o processo de destituição da guarda é longo e muitas crianças e adolescentes permanecem parte da infância nessas instituições, o que dificulta ainda mais a adoção, pois extrapola, em muitos casos, o perfil de idade mais procurado.
“Sempre sou perguntado sobre o motivo da demora nos processos de adoção no Brasil. Penso que, na verdade, a pergunta que deveria ser feita é por que as Ações de Destituição do Poder Familiar demoram para ser ajuizadas e são tão lentas, quando o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) Lei 8.069/90, com as alterações introduzidas pela Nova Lei de Adoção, Lei 12.010/09 estabelece prazo máximo para sua duração, a saber, 120 dias em 1ª instância, prorrogáveis por mais 60 dias em caso de apelação”, declara o advogado Felipe Fernandes.
Segundo o jurista, o Ministério Público tem atribuição para a propositura das Ações de Destituição do Poder Familiar (ADPF) e deve zelar, juntamente com o Judiciário, para que esse prazo seja respeitado. “Já não basta a demora na habilitação dos pretendentes? Ou no cruzamento de dados entre pretendentes habilitados e crianças aptas a serem adotadas?”, exalta Fernandes.
O complexo processo de adoção de hoje nem de longe se compara ao praticado no passado. Há algumas décadas atrás, adotar uma criança no Brasil era para poucos. Regras no Código Civil limitavam a adoção para pessoas com mais de 50 anos e sem filhos legítimos. Naquela época o vínculo entre os pais e a criança era estabelecido com um simples registro público. Com a autorização dos pais biológicos e uma escritura pública era possível oficializar a adoção sem a interferência do estado. Era só o pai ou a mãe, que estavam querendo entregar a criança, junto com o casal interessado em adotar irem até um cartório de registro civil e lavrar o assento de nascimento da criança como se o filho fosse então deste casal.
Com a chegada do ECA, em 1990, tudo mudou. Depois da lei surgiram regras mais rígidas, os pais adotivos entraram para uma fila de espera, onde passaram a ser acompanhados por especialistas cuja missão é de avaliar o que é melhor para a criança e para os pais que irão adotá-las.
A importância dos grupos de apoio
Os grupos de apoio à adoção desempenham importante papel no esforço de aumentar a conscientização da sociedade sobre a questão, principalmente sobre as adoções mais necessárias (crianças mais velhas, com necessidades especiais e inter-raciais). Também é desenvolvido todo um trabalho em prol da adoção legal, segura e para sempre.
Os grupos organizam cursos e investem na preparação e no acompanhamento pós-adoção das famílias e das crianças e adolescentes. Palestras públicas são usadas para apresentar e discutir temas relacionados à convivência familiar e comunitária, além da essencial troca de experiências entre quem já adotou e quem está na fila.
E foi exatamente visando à troca e experiências que nasceu, há 15 anos, a Associação Civil Quintal de Ana. Fundada por Sávio Bittencourt, Procurador de Justiça do Estado do Rio e sua esposa Maria Bárbara Toledo, Notária e Registradora do Estado do Rio de Janeiro, a partir da adoção da sua filha, Ana Laura. O casal sentiu a necessidade de apoio psicossocial e jurídico durante e depois do processo. A experiência da adoção mostrou o ranço preconceituoso resistente em torno do tema, além da realidade de abandono, institucionalização e violação do direito fundamental de viver em família. Decidiram, portanto, ir além do desejo legítimo da maternidade/paternidade e se dedicaram à causa, divulgando uma nova cultura da adoção, com enfrentamento dos mitos e preconceitos, apoiando e orientando famílias adotivas e os pretendentes à adoção, e buscando soluções para a erradicação do abandono de crianças e adolescentes. A instituição fica no município de Niterói e são atendidas, em média, 1.740 pessoas por ano.
Apadrinhamento afetivo
Uma das ações dos grupos de apoio é desmistificar e incentivar o apadrinhamento afetivo. Na prática, o apadrinhamento de crianças ou adolescentes com poucas chances de adoção que vivem em abrigos garante a esses jovens a convivência em família. As crianças têm encontros periódicos – geralmente passam o fim de semana na casa dos padrinhos –, fazem passeios e participam dos eventos da família. Tanto os padrinhos quanto os jovens são preparados previamente por meio de associações como o Quintal de Ana, que promove essa ponte e possibilita a esses jovens a construção de vínculos fora da instituição em que vivem.
Uma das intenções do apadrinhamento afetivo é que a criança possa conhecer como funciona a vida em família, vivenciando situações cotidianas. Os padrinhos também passam a acompanhar a vida escolar dos afilhados. A desmotivação nos estudos é uma característica frequente entre as crianças que vivem em abrigos. Os primeiros encontros são na instituição e, para que sejam realizadas visitas na casa da madrinha ou padrinho, o local é antes visitado por uma assistente social.
Segundo a presidente do Quintal de Ana, Maria Bárbara Toledo, o apadrinhamento afetivo tem possibilitado adoções tardias, de crianças com deficiência e, ainda, de grupos de irmãos. “Nesse sentido, já foram realizadas quatorze adoções resultantes do apadrinhamento e hoje contamos com cinco padrinhos em processo de adoção dos afilhados, em menos de 1 ano”, explica.
O apadrinhamento inevitavelmente pode gerar expectativas na criança ou no adolescente de possível adoção futura, o que de fato ocorre em muitos casos, mas a psicóloga Aline Teixeira reforça que os padrinhos são preparados para participarem do projeto, assim como as crianças e adolescente. “Essa preparação de ambas as partes consistem justamente nessa possível expectativa do apadrinhamento gerar uma adoção. As crianças que participam desse projeto tem o entendimento do que é um padrinho em sua vida, qual o objeto e a finalidade do apadrinhamento”, garante.